TOCA ENTREVISTA: Luiz Mazzon – Diretor da Humane Farm Animal Care para a América Latina*
Com o olhar mais atento da sociedade sobre as condições de vida dos animais, o panorama no setor de proteína animal começa a mudar para melhor. Cada vez mais produtores aderem às práticas de bem-estar em resposta a uma pressão crescente da indústria, varejo e dos consumidores.
E a Humane Farm Animal Care, principal órgão de certificação internacional sem fins lucrativos voltada para a melhoria de vida dos animais de produção, está à frente desse processo no Brasil e no mundo.
Para Luiz Mazzon, diretor para a América Latina da HFAC, a melhoria nos processos que visam garantir qualidade de vida aos animais é uma tendência já consolidada.
E o Brasil, em comparação com outros países em desenvolvimento, já saiu na frente, com muitos produtores aperfeiçoando seu manejo. A Fazenda da Toca, por exemplo, é a primeira produtora certificada na modalidade caipira de produção de ovos a receber o selo Certified Humane, da HFAC.
Com ampla experiência em sistemas orgânicos e de bem-estar animal, Mazzon nos deu nessa entrevista abaixo um completo panorama sobre as perspectivas e desafios em relação às práticas de bem-estar animal.
Confira a seguir:
Como você avalia a adesão de produtores a práticas de bem-estar animal no Brasil?
Esta adesão ocorre de forma lenta, mas gradual. O grande impulso é dado pelo mercado, que está pressionando os produtores a adotarem práticas mais humanas de manejo. Quando digo mercado, me refiro mais aos grandes compradores (grandes empresas que usam ingredientes de origem animal nas suas formulações) do que o consumidor final em si. Por outro lado, o sistema caipira de produção tem um forte apelo na mente do consumidor brasileiro, e isso também ajuda na pressão por melhores práticas de criação de galinhas poedeiras. A propósito, foi um grande avanço a publicação da norma técnica NBR 16437, da ABNT, no final de 2016, com as regras para a produção de ovos pelo sistema caipira. Faltaria agora garantir que qualquer produtor que faça referência ao sistema caipira na embalagem tenha a obrigação de se certificar, o que daria maiores garantias ao consumidor final. De qualquer forma, posso afirmar que o Brasil é um dos países em desenvolvimento líderes nessa adesão dos produtores a melhores práticas de bem-estar. Estive recentemente em um evento voltado à produção de ovos de galinhas livres no Sudeste Asiático, e pude constatar que lá o movimento está apenas começando. Algumas empresas já estão se comprometendo a comprar apenas ovos de galinhas livres, mas não têm ainda opção de produtores que oferecem esse tipo de produto.
Pela sua percepção sobre o mercado consumidor, como fica a questão da vantagem competitiva, na sua opinião? O quanto os consumidores estão dispostos a pagar a mais por um produto que considera o bem-estar animal?
Costumo comparar muito o mercado de produtos com certificação de bem-estar animal com os produtos orgânicos, pois são consumidores com o mesmo perfil, mais conscientes sobre o alimento que consomem. Vemos no Brasil um aumento anual constante entre 20 e 30% nas vendas de produtos orgânicos há muitos anos. Por isso, acredito que produtos com certificação de bem-estar animal têm forte potencial, mesmo porque esta certificação por si só não impõe a presença de ração orgânica aos animais, que muitas vezes traz um forte impacto no custo do produto. Quando o produto, além de ter certificação de bem-estar animal, é ainda orgânico, considero que tem uma enorme vantagem competitiva com relação aos produtos convencionais. Mas você tem razão quando pergunta sobre a disposição do consumidor em pagar mais por isso. A resposta vai depender muito de cada mercado. Nos grandes centros urbanos, cidades com mais de 1 milhão de habitantes, a parcela da população disposta a pagar mais é maior, naturalmente.
O número de produtores certificados vem crescendo? Quanto?
Vem crescendo, mas de forma lenta. Muitas consultas sendo feitas, produtores interessados nas normas e tudo mais. Mas noto um crescimento mais forte em outros países. No Chile, por exemplo, tínhamos apenas um cliente certificado até o final do ano passado. Agora já temos cinco. De qualquer forma, nossos clientes têm grande visibilidade no mercado, alguns com produções mais modestas, mas outros com altos volumes, o que comprova que as práticas de bem-estar animal podem ser adotadas por produtores de qualquer tamanho.
Qual é o ramo de atividade que hoje é mais engajada às práticas de bem-estar animal (avicultura, suinocultura, pecuária etc)?
No momento, sem dúvida nenhuma é a avicultura, mais especificamente a criação de galinhas poedeiras.
Falando em avicultura de postura, que é o nosso negócio aqui na Toca, quais são as principais exigências e os aspectos mais considerados pela certificação?
São várias as exigências, nosso referencial para galinhas poedeiras tem muitas páginas! Mas vamos a alguns dos principais tópicos:
– Densidade – de 0,09 a 0,14 m2 por ave, dependendo do tipo de alojamento (piso único, slat ou aviários de vários níveis). Frangas de reposição tem densidade mínima determinada também.
– Recursos nos galpões – 15 cm de poleiros por ave adulta, 7.5 cm por franga a partir da 4ª semana; 1 ninho para cada 5 aves, espaço de comedouros e de bebedouros dependendo do tipo de equipamento, cama apropriada em um mínimo de 15% do espaço de piso
– A gestão da cama é um ponto bastante importante. Deve estar sempre seca, em boas condições para que os animais possam expressar o seu comportamento natural
– Debicagem proibida, permitido apenas o aparo de bico em um nível mínimo, e o procedimento deve ser realizado até os 10 dias de idade
– Conforto térmico através de controle de temperatura e ventilação, níveis de amônia controlados, número mínimo de horas de escuridão total e de luz
– Presença de uma área separada para o tratamento das aves doentes, com os mesmos recursos disponibilizados às outras aves
– Proibição da presença de ingredientes provenientes de mamíferos ou aves na ração. Proibição da presença de antibióticos preventivos e promotores de crescimento na ração.
Além disso são exigidos diversos tipos de registro para manter o controle do manejo das aves durante o ano todo (verificados durante as inspeções), além da capacitação de todos os funcionários envolvidos no contato com os animais, para que tenham tratamento compassivo e saibam identificar sinais de problemas que precisam de atenção imediata.
O que você considera ser o principal desafio da certificação (custo, mão de obra qualificada para o manejo etc)?
Pelo que tenho conversado com produtores certificados, o custo da certificação não é um obstáculo. O maior desafio seria a quebra de certos paradigmas, e o tratamento das causas e não das consequências. Por exemplo, se um produtor está com problema de amontoamento das aves em algum galpão, ao invés de colocar fiação elétrica para “treinar” as aves, deve descobrir o que está causando este amontoamento. Pode ser algum predador (coruja, cachorro, etc), algum ruído diferente, enfim, algo que precisa ser sanado para evitar a consequência. Para os pequenos produtores é um desafio também manter o nível de registros exigido pela certificação. Ele precisa ser organizado o suficiente para que toda a sua operação possa ser monitorada constantemente. A capacitação dos funcionários também é um grande desafio, pois um manejo inadequado pode ser a causa da suspensão da certificação.
Falando especificamente em aves de postura, hoje quantas granjas com quantos animais são certificados pela Certified Humane?
Atualmente, na América Latina, temos aproximadamente 30 granjas com 1,2 milhão de aves certificadas. Na América do Norte o número é bem maior, pois foi lá onde tudo começou, com granjas certificadas desde 2003.
Muitas empresas, como Carrefour e GPA já se comprometeram a apenas comprar de granjas provenientes de sistemas livres e gaiola. Como esse comprometimento pode mudar o panorama da produção e aumentar o foco em bem-estar?
Este comprometimento é o que está pressionando os produtores. Pode, portanto, mudar bastante o panorama, empurrando a maioria dos grandes produtores comerciais para iniciarem produções livres de gaiolas. Não vejo no Brasil um panorama a curto ou médio prazo onde toda a produção seja convertida a livres de gaiolas, mas todos os grandes produtores, ou já se certificaram, ou estão buscando maiores informações. Há inclusive uma pressão para que se regulamente o assunto, pois não existe nada “oficial” a este respeito.
O mercado de orgânicos vem crescendo a uma taxa significativa porque as pessoas estão mais interessadas em produtos naturais e que considerem uma prática que respeita o meio ambiente e os animais. Como você vê essa intersecção entre orgânicos e bem-estar animal?
Como comentei anteriormente, a intersecção é total, mesmo porque no regulamento de orgânicos estão presentes vários critérios de bem-estar animal também. O consumidor está mais atento, está entendendo mais de onde vem o seu alimento. Está entendendo o efeito que provoca o alimento no seu corpo, na sua longevidade, na vida da sua família, no bem-estar dos seus filhos. As redes sociais têm um papel fundamental nisso. As novas gerações estão cada vez mais antenadas, lendo rótulos, buscando alternativas mais saudáveis e mais sustentáveis. É um caminho sem volta.
Como você enxerga o futuro da criação de animais para a produção?
Com muito mais bem-estar para os animais. Essa movimentação atualmente está muito forte para as galinhas poedeiras. No entanto, muitas empresas já estão se comprometendo em melhorar as práticas na criação dos suínos, grandes abatedouros estão se adequando à normas para abate humanitário, e pouco a pouco as legislações vão absorvendo práticas de bem-estar. Neste exato momento está em consulta pública uma lei com melhores práticas para a criação de suínos, e tenho visto articulações para a regulamentação da produção de ovos por galinhas livres de gaiolas. O futuro certamente será melhor para os animais de produção.
*Esta entrevista é de autoria da Fazenda da Toca Orgânicos, cliente certificado pela Certified Humane. O conteúdo está publicado originalmente no site da Toca.
Publicado em 29 outubro de 2018